A tarde negra e fria finava-se, mas Manuel e Maria, habituais frequentadores do parque da cidade não se amedrontaram com o escuro e, cansados, regressaram a casa depois da caminhada.
Junto à sua porta, aguardava-os Clarimundo, homem na casa dos 50, que as agruras da vida envelheceram, precocemente. Estático como uma múmia, pedia ajuda, como tantas vezes faz.
“Saí sexta-feira do Hospital onde estive internado uma semana, por ter desmaiado na rua. Há três dias que não tomo remédios. Na minha casa não há dinheiro. Os meus irmãos ainda não receberam e o senhor sabe que eu não tenho nada... Dizem que na farmácia do Hospital aviam medicamentos e a gente vai lá pagar, quando recebe.” “E então? O que falta?”- perguntou Manuel olhando para os dois envelopes que Clarimundo trazia debaixo do braço. “Meu irmão não tem gasolina no carro e eu vinha pedir que me levasse à farmácia do hospital, se não ainda vou parar às urgências outra vez...”- atalhou o homem, tocindo a cada frase que pronunciava devido à falta de oxigénio nos pulmões atrapalhados...”E agora o doutor descobriu-me também uma doença no coração... não me faltava mais nada!...”
Maria comoveu-se com o desabafo do Clarimundo e entrando em casa virou-se para o marido: “Vai lá, depressa, com ele!”
Durante a curta e silenciosa viagem, o homem só não conseguiu calar a sua respiração ofegante e cavernosa. Mas quando descobriu a farmácia, por detrás das urgências, ganhou ânimo e exclamou: “É ali!”
Clarimundo não esperou muito. Atendeu-o a directora do serviço a quem entregou os dois envelopes que trouxera do hospital, e murmurou com a humildade de quem nada tem de seu: “Óh Senhora, eu não tenho dinheiro para pagar os medicamentos, mas quando tiver, venho aqui pagar”. A farmacêutica ouviu-o, atenciosamente, perguntou-lhe se alguém no hospital o informara da existência de que podia ter recorrido ao serviço social do hospital para adquirir os medicamentos e, face à gravidade do estado de saúde do doente disse-lhe: “Nós aqui não fornecemos medicamentos de graça, mas eu vou ver como é que vamos resolver o assunto.”
O homem aguardou em silêncio, de pé, mas perante a sua evidente debilidade foi aconselhado a sentar-se. Estava sereno mas confiante de que ia conseguir levar os medicamentos consigo. Passados alguns minutos, a farmacêutica chamou-o para dizer que lhe aviara a medicação para um mês. Depois, escreveu tim-tim-por-tim-tim como deveriam ser as tomas e, num bilhete apenso à factura, informou o serviço de acção social onde ele deveria ir no dia seguinte, das razões para lhe ser dada a importância em dívida na farmácia. “Depois o senhor vem aqui pagar”- atalhou a senhora, sem avisos nem ameaças, ciente de estar perante um homem sério e cumpridor da palavra.
Este procedimento merece a minha homenagem pública.
Quantos e tão bons samaritanos há por aí, em serviços públicos ou não, praticando a solidariedade, o amor aos mais necessitados, prestando um serviço digno e desinteressado, sem que as suas boas acções conheçam a luz da ribalta e o reconhecimento das homenagens e condecorações públicas!...
Ao contrário, há outros que, perante situações terríveis de fome e pobreza, propõem soluções legalistas mas aberrantes que bradam aos céus e afrontam os valores da família.
“Há dias, um casal desempregado, com uma filha com trissemia 21, foi à Acção Social pedir ajuda. Como um dos conjuges recebia subsídio de desemprego, foi-lhes dito que, se quisessem receber apoio para cuidar da filha, tinham de se divorciar. Quando ouvi isto, eu chorei, senhor, porque conheço a seriedade das pessoas em causa.” - lamentava-se uma empregada comercial, abalada pela forma fria como se trata pessoas em dificuldade, fruto do desemprego que grassa por aí e afecta o relacionamento saudável em tantos lares.
Há quem diga que “o desemprego jovem tira-me o sono”, mas isso, vindo de quem vem, afronta milhares de pessoas que neste país estão no olho da rua, sem trabalho e sem meios de subsistência que promovam a honra e dignidade.
“Vamos dar a volta a isto!” gritam uns, manifestando a sua indignação e lutando por uma sociedade melhor. Outros, silenciosamente, resolvem situações indignas e desumanas. Ficar indiferente perante o que se passa à nossa volta alimenta a desumanidade e afecta a paz social, bem da humanidade que não tem preço!
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